PERMISSO, QUERO CONTAR MINHA HISTÓRIA…
Logo ao chegar na pequena comunidade de Mateguá, Rio Guaporé, no dia 19 de agosto, fomos recebidos pela jovem liderança do local, Anselmo Rios Escalera, que depois de nos dar as boas-vindas, foi direto ao ponto:
“Permisso, quero contar minha história”.
Marquei de visita-lo no fim do dia, hora do sol mais ameno. A casa fica afastada do centro da vila, também cercada de plantas e das mais diversas hortaliças. Pai de três meninas, Anselmo e a esposa são evangélicos, e contou que, apesar das distintas religiões da comunidade: católicos, israelitas e protestantes, vivem em harmonia e se respeitam.
Em 1988, a cidade boliviana de Aiquile, nas proximidades de Cochabamba, sofreu um dos piores terremotos da história do país. Um dos maiores do continente. Milhares de casas foram ao chão, centenas de mortos. Uma grande cratera foi aberta na principal avenida. Anselmo, na época com 12 anos, estava lá, na casa da tia, que morreu.
Naquela tarde de 1988, quando jogava bola com os primos, sentiu um leve tremor no chão. Nada grave. Porém, foi por volta das 22h30, que acordou sobressaltado, a tia corria aos gritos pela casa e a porta do quarto em que estava bateu com força. Novo tremor e as luzes falharam. Um forte estrondo do lado de fora. Muitos outros. Ele e os primos, aterrorizados, abraçaram-se, enquanto a tia tentava abrir a porta do quarto que emperrou, com o impacto violento da batida.
De tempo em tempo, durante toda aquela noite, sentiu a terra tremer, como se houvesse água no chão, não era mais sólido. Cada vez que tremia, barulhos assustadores, de casas desmoronando e pessoas a gritar. Tudo escuro, a luz falhou de vez. Por fim, a tia conseguiu quebrar e porta e resgatou os sobrinhos.
Agora, os olhos de Anselmo umedeceram e sua narrativa ficou mais lenta:
“Não reconheci mais a cidade quando saí de casa. Por sorte, mamãe estava no campo. Lembro que tinha pessoas andando sobre os escombros, outras de joelhos, de braços pro alto. Senti muito medo, muito medo mesmo. Eu e meus primos. A tia, a gente não conseguiu mais vê-la, nunca mais. Pedras enormes rolavam dos montes. Muita gente morta, machucada. Eu sobrevivi ao terremoto de Aiquile”.
Depois da tragédia, com outros parentes, rodou pela Bolívia em busca de um novo lar. Perderam tudo no terremoto, até chegar em Mateguá, na época, com apenas 04 família. O primo, que chegou antes, foi quem o levou, junto com a sua mãe, camponesa andina, que se adaptou como pôde na Amazônia, mal fala espanhol, pois seu idioma é quéchua.
“Aqui é seguro” – assim os convenceu o primo.
Ao ser indagado se já se acostumou com a floresta, disfarçou um sorriso: “Agora sim, gosto daqui, mas demorei muito pra me acostumar. Aqui não faz frio, tem muito mosquito. Mas aprendi a pescar, caçar, comida não falta. Vivemos com fartura. A vida é boa aqui. Muito boa. Tranquilo, todo mundo se conhece, não tem roubo. Todo mundo cuida de todo mundo. Aqui é seguro, aqui a terra não treme. Mas tem onça e tem jacaré. Outro dia, mesmo, minha mulher gritou, tinha um jacaré de mais de cinco metros no meu terreiro, pertinho das crianças.”
Por fim, completou: “Sabe, voltei lá em 2006. Tudo reconstruído. Os parentes que ficaram, ninguém me reconheceu. Precisei dizer, sou eu, o Anselmo. Mas o que eu fiquei triste, o que fiquei pensando, foi que perdi meu estudo. Os primos que ficaram, todos eles são profissionais. Tem professor, dentista. Eu precisei parar de estudar.”
Entendi a necessidade de Anselmo ir até o barco e pedir para contar sua história. Precisa dar voz ao que viveu. Pois quando conta, também reflete sobre a sua própria existência, torna-se o protagonista da aventura de sua própria vida. O sobrevivente, o herói. Pois, de fato, assim é.
Naquela noite, fizemos uma das mais emocionantes apresentações do Festcineamazônia, o telão de cinema montado, sempre é poético e mágico, ainda mais em lugares como aqueles. Tão especiais, por serem únicos. Uma pausa antes do início da apresentação, uma cobra surucucu invadiu a plateia. Das mais venenosas da floresta.
Resolvido o problema, no melhor estilo amazônico, uma paulada bem dada no peçonhento animal, iniciou o espetáculo. A comunidade em peso foi prestigiar, pelo menos umas 150 pessoas. Tive a impressão que também somos público.
O Festcineamazônia Itinerante tem o patrocínio do BNDES, Ministério da Cultura, Secretaria do Audiovisual Lei Rouanet, apoio cultural da Fundação Saramago e Iphan. Parceiros de Mídia Rádio Parecis FM e Canal Brasil. O Festcineamazônia é membro do Green Film Network e Fórum dos Festivais.
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