Capixaba

Capixaba

O sono imperava absoluto na van no caminho à cidade de Capixaba, no Acre. Tínhamos chegado muito tarde ao hotel na noite anterior e nenhum de nós dormiu o suficiente para conseguir recarregar a bateria de forma decente.

O único som que realmente se ouvia era o do CD acústico do Rappa que, aquela altura do campeonato, já soava como tortura chinesa. Eu ainda resisti bravamente. Precisava recuperar o tempo perdido. Depois que o meu notebook queimou, tinha ficado muito mais complicado de escrever (eu ainda não havia me adaptado com o Mac que a Fernanda me emprestara. Na verdade, até o presente momento eu continuo apanhando para o Steve Jobs).

Ao meu lado, Fernanda relatava seu épico confronto contra uma possível perereca que havia encontrado no quarto do hotel de Iñapari. Fernanda é uma mulher inteligentíssima, de personalidade forte e corajosa, capaz de enfrentar um batalhão do Bope só com o poder da voz. Mas com um medo mortal de anfíbios que a torna incapaz de enfrentar uma perereca. Cada um com sua Kriptonita.

Lá fora, é possível ver o borrão branco se aproximando no horizonte do solo praticamente careca com pastos a perder de vista. Os pingos grossos da chuva batem com violência na lataria da van. Apresso o passo para poder ter algumas horas de sono antes de chegar a Capixaba. Com exceção de uma súbita quebra do ar-condicionado, que deixara a todos preocupadíssimos (mas que logo fora consertado pelo seu Joselito), a viagem seguiu sem grandes sustos até nosso destino final.

Chegamos ao hotel em Capixaba. Almoçamos e já pergunto para o dono do local onde ficamos hospedados se havia alguma personagem interessante para o projeto dos Museus Vivos. Tivemos alguns desencontros até chegarmos à nossa personagem, dona Rosaura. Ela tem 80 anos, cabelos grisalhos e pele branca, mas bem menos enrugada que dona Raimunda, nossa primeira personagem. Impressionante como o trabalho no sol envelhece. Ela veste uma camisa azul de bolinhas brancas, com um crucifixo caindo no peito.

Ela foi uma das primeiras pessoas a se instalar em Capixaba. Como professora lutou muito para conseguir trazer vitórias para a educação e, consequentemente, o próprio desenvolvimento da região. Contou como quando chegou havia apenas mato e pouquíssimas famílias vivendo no local. Todas de donos de seringais. A escola ajudou a aproximar os trabalhadores que ficavam muito longe e passaram a se aproximar para que pudessem estudar. Uma personagem que explica muito e que cumpre seu propósito, já que ela viveu absolutamente tudo o que aconteceu na cidade, mas que emociona bem menos que a anterior.

Abrem-se parênteses. Mas porque cargas d’água um município no Acre se chama Capixaba? Bem, na época do ‘boom’ da borracha, várias famílias se mudaram para o norte do país. Uma das primeiras que lá chegou tinha saído exatamente do Espírito Santo. Como era uma família que tinha uma condição financeira um pouco melhor, servia como ponto de distribuição e venda de artigos de primeira necessidade, principalmente ferramentas. Assim, sempre que alguém precisava de alguma coisa, falava que ia ver se tinha lá no “capixaba”. O nome se tornou ponto de referência. Na época de emancipação da cidade, uma eleição entre Capixaba e Vila Santo Antônio (padroeiro da região) feita com caroços de milho (representando Capixaba) e de feijão (representando Vila Santo Antônio) decidiu o nome. Venceram os caroços de milho.

Por volta das 16h, eu estava escrevendo no quarto pequeno do hotel azul. Um beliche uma cama de casal, um frigobar desativado, uma televisão sem funcionar em cima de uma mesa de madeira e um ar-condicionado barulhento preenchiam o quarto acanhado. No meu celular, as poucas músicas do Descendents me distraem enquanto tento produzir, lutando para conseguir colocar todos os acentos usando o Mac. Eis que entre uma música e outra eu ouço um chiado familiar. Pauso a música, para ter certeza do que ouvia. Sim, era ela… A famosa chuva nortista. Pingos grossos, retos, frios, caindo com força nos vidros e telhados do hotel.

Não havia muito o que fazer naquele momento, senão salvar tudo o que tinha feito até então, trocar de roupa e descer a escada estreita que levava ao térreo. Na entrada do hotel, Christyan e Phillipe conversam com Fernanda sobre algo que naquele momento já não era mais importante. Precisávamos tomar banho naquela chuva. Mais que isso, seria um insulto se não o fizéssemos.

O primeiro que convenci foi Philippe, com o seguinte diálogo: “Vamo!”,  “Vamo mesmo?”, “Vamo, pô!”, “Tu vai mermo?”, “Vou, pô! Bora!”, “Então bora!”, “Bora mesmo?”, “Num tô falando ‘bora’?”, “Então bora!”.

Fomos.

O segundo foi Christyan. Ele estava reticente. Havia muito o que fazer, muito o que trabalhar. Ele é um daqueles caras pilhados do bem que te puxam para cima sempre que você está para baixo e cuja animação é sempre instigadora. Mas naquele momento ele estava indeciso. Pensou, relutou um pouco e só se convenceu da ideia com o aval de Fernanda e depois que eu e Philippe entramos debaixo da chuva.

Éramos apenas nós três na rua naquele momento. Três marmanjos barbados correndo no meio da chuva torrencial como se fossem três moleques. Fernanda ria e tirava fotos nossas pulando e tomando banho de biqueira. Foi sensacional!

Faltava muito pouco para ficar tudo perfeito. Até que, olhando do outro lado da avenida, avistei dois garotos correndo em direção ao campo de futebol do município. Um deles levava consigo uma bola embaixo do braço. Pronto! Não faltava mais nada!

Não tive dúvidas. Chamei Chris e Philippe e ainda convenci dois meninos da montagem. Formou o time partimos para o campo. Vamos jogar bola na chuva, mermão!

Era um goleiro e dois times de três. Dois ficavam de fora. O gramado estava extremamente escorregadio e a chuva continuava caindo com força. Várias poças de lama se formavam e era praticamente impossível correr sem escorregar.

Não acho que devo entrar em muitos detalhes sobre o jogo. Basta dizer que fiz o papel do Romário, na época do Vasco, ou do Robgol no fim de carreira no Paysandu. Ali próximo do gol, deixando os mais jovens correrem pra lá e pra cá, marcando adversário em cima, assumindo para mim apenas o papel lisonjeiro de fazer a mais nobre parte do futebol: fazer gols. Quem não me conhece até pensa. Mas o saldo real foi um gol de puro oportunismo, duas bolas na trave na sorte, várias oportunidades perdidas por total falta de habilidade. Além de vários carrinhos na grama escorregadia e cheia de lama, claro.

A chuva passou, a fominhagem por bola também. Voltamos para o hotel e esperamos a hora do festival.

Quando a noite chegou, Sussa e o pessoal da montagem já tinham terminado o serviço. Capixaba é uma cidade muito bonitinha, com ciclovia e um calçadão movimentado, com várias lanchonetes e serviços. A estrutura ficou montada na entrada do campo de futebol, de frente para o hotel. Uma sacada do lado direito do telão servia como camarote e uma grande árvore criava sombra e dava charme ao local escolhido. O local ficou absolutamente lotado, com muita gente no canteiro central da rodovia que corta o município e com os comerciantes ao redor aproveitando para faturar uma graninha com o movimento atípico.

A noite foi linda. A programação conseguiu se conectar bem com o público. Os palhaços Figurita e Aguahito conseguiam se entender com a plateia mesmo só se comunicando com apitos (nenhum dos dois sabe falar português).

Estava tudo bem quando subitamente veio o breu. Um problema em um dos transformadores de energia da cidade deixou boa parte de Capixaba no escuro completo. Algo que poderia ter acabado com o espetáculo. Nada! Mesmo no escuro a população não arredou o pé de onde estava o festival, alimentado por geradores. A cidade estava toda no escuro e o único local que iluminava o município era onde estava a arte. Em tempos de crescente obscurantismo, pense na simbologia deste momento. De uma forma ou de outra, a arte sempre ilumina.

O show continuou como tem que acontecer.

E ia seguindo bem, até que veio a cena mais inusitada da noite. Enquanto os palhaços divertiam as crianças em sua apresentação, no alto da árvore que ficava ao lado do telão uma preguiça (que eu mentalmente apelidei de Sarali), pisava vagarosamente em falso em um dos galhos. Antes de se estatelar no chão ela consegue se segurar no último galho antes de cair. O barulho na árvore foi o suficiente para transformar a noite, que estava indo bem, em um completo caos. Todas as pessoas que estavam sentadas no show foram correndo para ver a tal preguiça.

Rodeavam a preguiça embaixo do galho em que ela estava agarrada, gritava, tiravam selfie e fotos com flash em sequência. A organização do festival ainda tentou convencer os moradores a dispersar e continuar o show, até porque, estávamos todos preocupados com a integridade do animal. Demorou, alguns minutos, mas conseguiram tirar a multidão do local que acabou dispersando de vez.

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