DIÁRIO DE BORDO – SANTA CRUZ DE LA SIERRA (BOLÍVIA)
O produtor Rogério Danin seguiu de avião para Santa Cruz de La Sierra, uma semana antes do evento. Lá reencontra familiares que facilitam sua produção, agendando entrevistas em canais de televisão. Também divulgou o Festival por meio de faixas e uma equipe de som volante; visitou escolas e definiu o local das atividades: Paróquia Maria Assunta.O padre Marco, um polonês que adora futebol, se mostrou preocupado com o conteúdo da apresentação do Palhaço Xuxu. Ah se o padre Marcos viu aquele filme que mostra seu colega ouvindo jogo e torcendo por um time de futebol durante a cerimônia de um casameto…
Outros integrantes da equipe (Jurandir Costa, Fernanda Kopanakis e Luiz Carlos Vasconcelos) também chegariam à Santa Cruz de avião, três dias antes do evento.
A princípio, o trajeto Guayara-Merim/Santa Cruz seria feito por terra. Claro que a viagem seria mais árdua, mas aproveitaríamos para captar imagens e fotos do trecho, enriquecendo nosso acervo. A opção por avião deveu-se à liberação tardia de recurso para a execução do projeto. Mas tem-se a notícia de que a estrada está intransitável por conta de intensas chuvas. Seria um risco.
Tudo foi muito bem, no entanto. Em Santa Cruz, a equipe esteve reunida com diretores do Festival de Cinema Fenavid Internacional. Alejandro Fuentes, diretor do Fenavid, será um articulador do Festcineamazonia na Bolivia. Participou também do encontro Gerardo Guerra, maior distribuidor de cinema naquele país. Ele é diretor-presidente da Londra Films. Outros realizadores também contactados: Jorge Sierra, Tomas Esney Bascope e Ernst Udo Drawert. Na sexta (6), a equipe de Santa Cruz se juntara a de Guajará. Teria início, então, a segunda etapa da aventura.
Porto Velho/Guajará-Mirim
A plotagem dos carros acabou nos retendo em Porto Velho pelo menos quatro horas acima do horário previsto para a partida do FestCineamazônia Itinerante-2011, rumo a Guajará-Mirim e Bolívia (Guayara-Merim e Riberalta). Pretendíamos sair da capital rondoniense às 4 da tarde, saímos às 8 da noite, daquela quarta-feira (4). Pé na estrada, a equipe, distribuída em dois carros – uma Van e uma L200 – percorreu 360 quilômetros de uma rodovia em sério estado de abandono. Quase não se dormiu, os solavancos não deixavam. Graças à experiência dos motoristas – seu Teixeira e do Marcinho VP – a viagem foi segura e tranquila.
– Acho que tá tudo pronto, né cambada? Ô, Bonitim (o serelepe Cristian)! Cadê os “canfletos”? Pergunta o Gil, o chefe-geral de Operações a Fundo Perdido da trupe mambembe. Ele, o Gil, se liga em tudo, até em aplicar apelidos indiscutíveis. O novo eletricista, por exemplo, ganhou o simpático “Pirata”. É só olhar para os metro e noventa do Sérgio, viajar no tempo e então você vai vê-lo num navio corsário a pilhar outros por encapelados mares.
Uma coisa intriga e era uma das pautas para discussão da equipe: a que se deve tamanho desleixo, tanto na estrada como na área urbana da cidade conhecida como a Pérola do Mamoré. Nós, reles mortais, jamais vamos entender os homens do poder. Melhor deixar pra lá, por enquanto!
Salvo engano, a janta foi ainda em Jacy-Paraná. Pra variar, o Toniquinho sempre indeciso na escolha do cardápio ou exagerando na porção do prato. Decidiu-se por um ensopado de carne pra depois reclamar que era sebo puro. Mas a viagem lhe reservaria outras situações não menos pândegas.
Mais uma vez deparamos com a inoperância do poder público: Guajará-Mirim, a Pérola do Mamoré toda charmosa, sofre silêncio total. Ôps! Abandono total. A exemplo da capital, a vocação turística de Guajará é subestimada pelos governos estadual e municipal. E haja buraqueira, lixo e nenhum projeto cultural. Essa carência é visível na expressão da comunidade que também tem sede de arte.
Vimos essa ânsia nos olhos de quem foi prestigiar o FestCineamazônia na Escola Maria Celeste sexta-feira (6) à noite. À esta altura, a equipe de Santa Cruz já se juntara com a de Guajará relatando o desempenho das atividades por lá, resultando no estreitamento do intercâmbio cultural o que pode ser um passo para um trabalho conjunto de produtores brasileiros e bolivianos. Mas, como dizíamos, estudantes, professores, e a comunidade em geral, extasiavam-se com o cinema e a irreverência hilária do Palhaço Xuxu. No entanto, muitos lamentavam a curtíssima temporada da trupe. Paciência, não dá para preencher o vazio cultural deixado pelo Estado. A grana é curta e o mecenato não é garantia de votos.
Bem, de qualquer forma, Santa Cruz De La Sierra e Guajará-Mirim eram etapa vencida. Preparávamo-nos para retornar à Bolívia, começando por Guayara-Merim, logo ali, do outro lado do Mamoré. A odisseia só começava.
Levantamos cedo. Tínhamos pressa, pois pretendíamos almoçar uma parrilhada em Guayara. Fomos à Polícia Federal para um tal visto, o que nos daria o direito de circular livremente na Bolívia, como estabelece acordo firmado entre o Brasil e países vizinhos. Ledo engano.
– A Carteira de Identidade de todos! Anunciou um agente. Aí a coisa começou a pegar. O Gilmar – o Peruca – simplesmente esqueceu a CI em casa, aí ligou para a esposa mandá-la por um taxista; o pior veio a seguir: o Zé Katraka e o Pirata apresentaram documentos mais antigos que as Caixas D’Água. Não, a do Zé parece que não era tão antiga assim, a turma diz que datava de 1912; na foto, o cabelo era pretinho. Depois de muito lenga-lenga e um esculacho do doutor delegado, os dois foram liberados mas com uma advertência sumária: “se vocês voltarem aqui com esse pedaço de papel velho e seboso, eu prendo os dois!”
Bem, agora é só carregar os carros, pegar a balsa e até breve. Que nada! Os homens da Fazenda encresparam. Libera-não libera, libera-não libera, não liberaram. Nada de carro, só os equipamentos iriam atravessar. Isso depois de mais de quatro horas de negociação. Quanta impotência nossa, quanta burocracia e arrogância deles, meu Deus!
Atravessar como a aparelhagem, num sábado quente e enfadonho? Com a ajuda abnegada do irmão boliviano Abraão, conseguimos uma “chatinha” – uma espécie de canoa grande chamada também de batelão em algumas regiões da Amazônia. Corre então um disse-me-disse de que os homens haviam decidido liberar os carros. Chegamos até mesmo a comemorar. Alarme falso. Só que o piloto da “nau dos insensatos” ouviu o tititi e foi embora fulo da vida.
– Por que vocês deixaram o cara ir embora? Uma porrada de homem e nenhum segurou a corda da canoa! Vociferava o Jura, bufando que nem um cabritinho. Mais uma vez entra em cena nosso anjo da guarda boliviano – o Pai Abraão – providenciando outra chatinha. Agora era só carregar a embarcação e zarpar. Calma, pra quê tanta pressa? Mais um longo capítulo de negociações, pois o piloto da dita nau estava com a carteira vencida. Acabaram autorizando o piloto assim mesmo, talvez enjoados da nossa cara.
Parece mentira, chegamos em Guayara-Merim! Uma van já nos esperava no porto para nos levar para o hotel. Desta vez tudo arranjado por outro colaborador boliviano, o incansável escritor Juan Carlos Crespo. Hotel Sion (?), uma arquitetura retrô e bem simpático, como observou a Fernanda. A exemplo de Guajará, Zé, Gilmar e Toniquinho dividiram aqui o mesmo quarto – o 51. Dizem que tal número deu repetidas boas ideias ao jornalista Tonico. Mas o apê do casal Jura e Fernanda também era de inspiração etílica – o 61.
A quadra de Esportes do bairro Belém quase não comportou tanta gente. Crianças, jovens e adultos foram em peso ao cinema. Essa foi uma grata surpresa e a compensação por tantos contratempos. Todos atentos aos filmes, e muito entusiasmados com a ideia de maior integração com o Brasil por meio de eventos como o FestCine. E o Palhaço Xuxu é uma irresistível unanimidade a arrancar gargalhadas Talvez contidas por anos a fio de gente de toda idade.
Guayara-Merim tem cerca de 40 mil habitantes e subsiste principalmente do comércio de produtos importados da Ásia. Os brasileiros aproveitam a diferença favorável do real frente ao peso boliviano na proporção de quase quatro por um. Mas o limite de compra é de aproximadamente 500 reais por pessoa.
De acordo com Juan Carlos, a escolha do local para a mostra se deve por tratar-se de periferia. Seria então mais uma oportunidade para que as pessoas mais excluídas tivessem essa oportunidade cultural e reflexiva. A comunidade disse sim à proposta comparecendo em massa ao Festival. Via-se em cada gesto a grata satisfação por terem sido lembrados.
Terminada a festa cultural daquele sábado, era jantar e cair na cama. Alguns nem jantaram, o cansaço era maior que a fome. O Tonico bebericou mais algumas pacenhas porque ninguém é de ferro.
Riberalta
Domingo, pé de cachimbo, rumamos cedo para Riberalta. Convenhamos, a cidade é maior que Guayara (100 mil habitantes), mas é menos arrumada. O hotel um tanto sinistro; os quartos, só individuais. Ficou meio pesado, mas, por outro lado, muita gente se viu livre das desafinadas orquestras do ronco. À noite fomos visitados por um fiscal de Imigração. Ele queria graça. Na parede, uma lista de hóspedes caloteiros; o nome Antonio Alves constava do rol, dentre o golpe estavam incluídos um colchão e cem cervejas. O jornalista não se abalou, pois disse que dívida velha não se paga. Quanto às novas, disse que as deixa ficarem velhas. Quem não gostou da individualidade foi o Gil, porque não pôde perturbar a vida do Marcinho VP. Olha a faca! Almoçamos num lugar agradável onde a dona de uma TV local ofereceu logo um espaço para a divulgação do evento. O almoço não era ruim, mas a feijoada é melhor. Quanto à pacenha, uma delícia!
Surpresa redobrada
O sucesso de público repetiu-se, a exemplo de Guayara. As cadeiras levadas para o ginásio de Esportes, local da festa da arte, foram insuficientes, muita gente nas arquibancadas, muita gente em pé mesmo. Valeu a pena. Em Riberalta o local escolhido também foi num bairro periférico. Como é grande a sede de arte. Todos vibravam com a forma concreta de integração com o Brasil sob a perspectiva cultural, respeitando diferenças. Os vídeos são sempre pontos de reflexão, mas sem extremos porque aí pode virar barbárie, como aponta Silvio Tendler, num dos seus documentários. Silêncio Total – Um Palhaço está chegando. Todo mundo entendeu o portunhol do Xuxu e caiu na gargalhada, lavando a alma.
E a integração começou ali mesmo, quando um grupo de meninas se prontificou a apresentar um número de dança típica. As jovens bailarinas deram um show sob o comando da professora Liliana Modina Cervantes, da academia da consagrada Juana Parraga.
Leve susto
Horas antes, quando a equipe montava o cenário para o espetáculo inesquecível, uma não muito agradável surpresa: uma nuvem de insetos invadiu o ginásio pondo em polvorosa quem trabalhava no local. Era uma espécie de besouro malcheiroso que se arremetia feito um tornado. O jeito foi juntar papelão e tudo que pudesse ser queimado, e fumaça nos bichos! Resultado: uma pequena montanha de insetos se formou num canto do ginásio. Óooooh! soltava quem via a cena. Inesquecível.
A volta
Não foi nada fácil, mas o dever está cumprido e estamos prontos para outros desafios. O próximo será a quase quatro mil metros. Haja fôlego!
Nada muito pitoresco na volta para casa, a não ser a constatação de que a Bolívia vive a expectativa de melhores dias com a integração com o Brasil e a Venezuela principalmente. As estradas começam a ser estruturadas é quase certa a construção da ponte sobre o rio Mamoré numa parceria com o governo brasileiro. Vamos torcer para que as desigualdades sejam diminuídas significativamente entre os povos latinos. Para isso, é mister o esforço de todos na hora de escolher nossos líderes, pois até aqui, não temos sido muito felizes especificamente em Rondônia. A gente merece coisa bem melhor.
Paredão e Farofino
– Deixem bolsa e tudo que carregam nas mãos aí no chão, e afastem-se! Todo mundo encostado à parede! Era a ordem de um policial federal, ao desembarcarmos em Guajará-Mirim. A seguir, vimos boquiabertos um cão farejador cheirar nossos pertences. É claro que nada comprometedor foi encontrado pelo cachorrão Farofino; mas ainda houve um engraçadinho espalhando por aí que o cão demorou-se mais numa bolsa do Toniquinho onde havia uma bota esquecida no hotel de Guayara-Merim. Calúnia pura.
Mais um contratempinho na hora de voltar para Porto Velho na segunda (9). É que o sistema da Receita Federal estava fora do ar. Chora daqui, chora dali, acabaram sendo bonzinhos e nos liberaram utilizando protocolos manuais. Ufa!
Jura, Fernanda, Rogério, Luiz Carlos Vasconcelos (Xuxu), Zé Katraca, Raí, Gilmar, Márcio, Gil, Christyann Ritse, Teixeirão, André, Abraão, Juan Carlos, Pirata, Antonio Alves e tantos outros que, de uma forma ou de outra, acompanharam a epopeia, podem não convencer, mas terão muito o que contar por toda a vida. Até o Peru.
Por Antônia Alves
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