A PEDRA NEGRA: SENHOR AMBRÓSIO

A PEDRA NEGRA: SENHOR AMBRÓSIO

Um papo com o homem mais velho da comunidade quilombola de Pedras Negras

Por Sérgio Carvalho Foto de Eder Medeiros


 

Junto com o músico Rodolfo Minari, aproveitamos a tarde na comunidade quilombola de Pedras Negras, no Rio Guaporé, para procurar personagens interessantes e tentar entender um pouco melhor a história do lugar. Duas crianças não pensaram duas vezes quando pedimos indicação de pessoas para conversar: “Seo Ambrósio, o homem mais velho daqui. Ele sabe de tudo”.

Senhor Ambrósio vive em uma casa azul, cercada de fruteiras, quase todas, carregadas. Bati palmas e fui recebido pelo velho negro de 85 anos com um sorriso no rosto, como se já nos esperasse. Sem cerimônias e sem perguntar quem a gente era, acostumado com visitas ilustres, como confidenciou depois, nos convidou para entrar e serviu um suco de araçá, geladíssimo.

O velho, entre pigarros e tosse, falava sem parar, com animação. Contava-nos sobre tudo, de seus anos de sub delegado na comunidade, das visitas de governadores e de como colocava o dedo nas feridas, pois não devia nada a ninguém e não tinha papas na língua. Contou das histórias de seu pai, da febre espanhola, que, em 1917, assolou a região, matando muita gente.

Contou que o avô morreu flechado por taquara envenenada, que existiam diversas malocas naquela região, mas que os índios, aos poucos, ou morreram ou fugiram. Segundo ele, Pedras Negras ficava em cima de um cemitério indígena, era comum depararem-se com urnas funerárias ao lavrar a terra. Quando chegaram os tratores, centenas de urnas e esqueletos despedaçaram-se com a lamina afiada. Acredita que foram destruídas mais de 2.000 urnas de barro.

Leitor voraz, tira os fins de tarde e os domingos para a leitura. Conseguiu chegar a quinta série, muito raro por aquelas bandas. Comentou, com ar de historiador, sobre os erros dos autores que escreveram sobre a região. “Muita coisa colocaram no papel, mas com pouca verdade, eu sei das coisas, porque eu vivi e me lembro de tudo.”

Então, fez um longo relato sobre uma antiga história do sumiço de um engenheiro, contratado nos primórdios das obras da BR-364. Na versão escrita em um dos livros históricos que leu, simplesmente, narrava-se que o tal engenheiro sumiu na floresta. Fato contestado por senhor Ambrósio, que também fora soldado do exército. Ele sabia a verdade. “O homem desafiou as autoridades, sorriu, pois o engenheiro era esperto e sabia das coisas, do desvio dos tratores e das máquinas que vieram de barco desde Belém até Porto Velho.”

O velho Ambrósio, antes de continuar a história enrolou seu cigarro de palha, uma pausa necessária, pois a história entraria em seu clímax. Era um narrador dos melhores. “O engenheiro ameaçou dar com a língua nos dentes e foi pego em sua maior fraqueza, o gosto pela caçada. Todos os domingos, o engenheiro tirava o dia para caçar com um cabo, não imaginava que seria pego de surpresa, na “trairagem”. Sabe no que dar desafiar os poderosos, não é ?! Foi assassinado, eu sei, todos sabiam – afirmou o velho Ambrósio, com o cigarro entre os dentes -. Pois o homem era valente e ousou desafiar quem mandava. Hoje só deve restar seus ossos em um buraco de tatu canastra”.

“Mas homem bom mesmo foi o Monsenhor Francisco Xavier Rey.” Senhor Ambrósio, tomando fôlego para uma nova história, parecia estar, realmente, emocionado. “Este sim, o benfeitor do Guaporé.” Contou-nos sobre o padre que, de cada comunidade, levava moças para estudar em Guajará, por 04 meses. Após este período, as levava de volta para as comunidades para serem professoras e repassar o que aprenderam. Dom Rey, como era conhecido o religioso, estava entre as figuras que o velho admirava, sobretudo, por sua sensibilidade para com a educação. Terminou o relato sobre o padre contando que ele sabia de tudo um pouco: professor, carpinteiro, músico, pedreiro, arquiteto e, até, médico.

Desta vez, eu quem coloquei o dedo na ferida, sem imaginar que o assunto parecia incomodar o velho. Buscava entender porque a comunidade era quilombola, de onde teriam vindo os negros que fundaram o lugar. Perguntei, então, se eles eram descendentes de escravos.

O falante senhor Ambrósio respirou fundo, tossiu e, finalmente, desabafou: “Não sei de onde tiraram isso. Meu avô, que morreu flechado, era bandeirante. O primeiro que fundou aqui foi um português, há muito tempo. Não sei de onde tiraram esta história de escravos.”

Não ousei comentar sobre a predominância de negros na comunidade. Muito menos provocar mais, dizendo que, provavelmente, os bandeirantes caminhavam com escravos. Raposo Tavares navegou por aqui, quem sabe, seu avô, morto por taquara envenenada, não estava entre os homens do famoso desbravador de sertões – e matador de índios?

O aparente desconhecimento da própria história, justamente, pelo homem mais velho, que rebate os argumentos dos livros pela sua própria experiência de vida nos revela ainda mais sobre o lugar, sobre o peso de ser negro e descendente de escravos, principalmente para os mais velhos, que ainda trazem na ancestralidade as marcas pesadas do cativeiro. A negação da própria história diz muito mais sobre ela que a sua afirmação. É a sua própria condição quilombola, muito distante dos discursos de orgulho racial e das políticas inclusivas.

Mas o negro velho senhor Ambrósio, pigarreou mais uma vez e deixou escapar uma pista importante sobre os primórdios do lugar: “Por aqui viveu uma preta escrava, a dona Catarina, deste tamaninho. Devia ter seus 120 a 140 anos. Morava em todos os cantos, não conseguia fazer morada fixa. Velha de fazer pena. Naquela época, os meninos não se animavam para enfrentar as pessoas mais idosas. Mas a velha nos levava para ver a marca de ferro queimado, com as letras de seu dono, marcadas na sua bunda seca. Isso eu vi. A bunda da velha tinha as iniciais de seus proprietários queimada na pele.”

Ao nos despedir, convidei-o para a exibição da noite do Festcineamazônia Itinerante. Ele, então, pela primeira vez nos perguntou quem éramos. “Ah! O povo do cinema, vou sim. Tenho amigos entre vocês, da outra vez que estiveram por aqui, tinha até um português – referiu-se ao cineasta português Ricardo de Almeida, que acompanhou a primeira itinerancia do Festival pelo Guaporé – cantei uma música para ele.”

O velho, então, cantou um antigo fado que exaltava Lisboa. Disse que o português ficou admirado, sem palavras. Nós também, senhor Ambrósio, nós também.

O Festcineamazônia Itinerante tem o patrocínio do BNDES, Ministério da Cultura, Secretaria do Audiovisual Lei Rouanet, apoio cultural da Fundação Saramago e Iphan. Parceiros de Mídia Rádio Parecis FM e Canal Brasil. O Festcineamazônia é membro do Green Film Network e Fórum dos Festivais.

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