Expectativa de hidrelétrica aumenta ameaças a assentados
Quando cai a noite no Projeto de Assentamento (PA) Areia, a quarenta quilômetros do município de Trairão, no oeste do Pará, o silêncio é cortado pelo barulho de motos rodeando a casa de Osvalinda e Daniel Pereira. Homens armados e encapuzados intimidam o casal, a mando de madeireiros daquela região da Amazônia. Plantadores de frutas, os Pereira estão jurados de morte por não colaborarem com a extração ilegal de árvores de alto valor comercial.
Ameaçados desde 2012, Osvalinda, Daniel e outro agricultor do mesmo assentamento – Antônio Silva – até foram incluídos em um programa do governo federal que em tese deveria garantir proteção a ativistas de direitos humanos. Mas, na prática, a segurança não é plena. Receosos, os vizinhos se afastaram, deixando os três camponeses ainda mais isolados.
Com graves problemas de saúde, Osvalinda percebeu que mostrar o rosto e revelar sua história talvez seja a única forma de preservar sua vida e a de seu marido. “Eu tenho medo. Mesmo com a proteção do governo, é difícil ter segurança no meio do mato”, conta Osvalinda. O marido, Daniel, emenda: “Não é fácil viver em um lugar em que você vai procurar segurança e não vai encontrar”.
A relação entre madeireiros e agricultores familiares dos assentamentos do oeste do Pará vem se agravando devido aos planos de construção da Usina Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, orçada em US$ 8,9 bilhões. O licenciamento ambiental da usina no rio Tapajós, um dos mais ricos em termos de flora e fauna na Amazônia, está suspenso desde o último dia 19 de abril pelo Ibama, órgão ambiental do governo federal.
A decisão foi motivada pelo início do processo de demarcação da terra indígena Sawré Maybu, do povo Munduruku, que será inundada pelo lago da barragem, caso a hidrelétrica venha a ser construída. A Constituição brasileira e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, garantem o direito dos povos originários às suas terras tradicionais e obrigam o Estado brasileiro a realizar consultas prévias para discutir os projetos que causem impactos aos indígenas.
Há pelo menos dois anos, a Funai – órgão federal responsável pela questão indígena – já dispõe de estudos para emplacar a demarcação da Sawré Maybu. Porém, como a hidrelétrica era considerada um projeto de infraestrutura prioritário do governo de Dilma Roussef, o processo estava empacado. Uma fonte com amplo trânsito na Funai ouvida em off pela Repórter Brasil avalia que, com a iminência do impeachment, o destravamento da demarcação da Sawré Maybu tem como principal objetivo transferir para o iminente governo de Michel Temer o constrangimento de bancar a construção da hidrelétrica que pode trazer prejuízos irreparáveis ao povo Munduruku. Ao mesmo tempo, a medida tenta dar uma satisfação aos movimentos sociais que sempre se queixaram da indiferença do governo Dilma para com a causa indígena.
Apesar da suspensão do licenciamento ambiental, o fato é que o projeto da barragem nem de longe está morto e enterrado. Consumado o governo de Temer, mudanças profundas ocorrerão na linha de frente do Ibama e da Funai. Além disso, a demarcação de uma nova terra indígena depende, em última instância, da vontade do Presidente da República.
Se a barragem vingar, pelo menos 2,5 mil ribeirinhos serão removidos de suas casas por conta da formação do lago da usina. Praias, ilhas e áreas de floresta também serão alagadas. Na realidade, um amplo leque de obras – que, além da hidrelétrica, engloba rodovia, ferrovia, hidrovia e portos fluviais – promete reconfigurar o território do oeste do Pará. No rastro da usina de São Luiz do Tapajós, por exemplo, está prevista a construção de eclusas que possibilitarão a interligação com o rio Teles Pires, no Mato Grosso.
A hidrovia pretende agilizar o transporte de grãos da região Centro-oeste, maior produtora de soja e milho do Brasil, a partir de portos fluviais nos municípios de Itaituba e Santarém. Além disso, a conclusão do asfaltamento da rodovia BR 163, que rasga de cima a baixo o oeste do Pará, e um projeto de ferrovia ainda embrionário, mas já apelidado de “Ferrogrão”, também são apostas dos empresários do agronegócio para otimizar a logística de commodities.
O anúncio das obras vem acompanhado das promessas de sempre sobre progresso e geração de empregos. No entanto, ambientalistas, agricultores familiares e ativistas de movimentos sociais vêm perdendo o sono por conta dos impactos socioambientais que a expansão da fronteira agrícola e a intensificação da atividade madeireira devem acarretar para essa porção ainda bem protegida da Amazônia brasileira.
Nos Projetos de Assentamentos do oeste do Pará, os lotes dos agricultores familiares têm até 100 hectares – o equivalente a 1 quilômetro quadrado. Porém, um intenso processo de “grilagem” (apropriação de terras por meio de fraudes e de violência) vem descaracterizando os Pas. “É na concentração de lotes pela grilagem e pelo conflito com os madeireiros que se dá a tensão agrária”, afirma Carolina Motoki, pesquisadora da Raice (Rede de Ação Integrada para Combater a Escravidão).
O caso do PA Areia é um dos mais emblemáticos. Um levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) – entidade ligada à Igreja Católica que presta assessoria aos agricultores – mostra que, dos 286 lotes do assentamento, 93 estão abandonados. Além disso, uma só pessoa chega a concentrar 22 lotes. “Os grileiros se apropriam da terra à base da violência e depois tentam legalizar essa fraude usando diversos artifícios”, explica Maurício Torres, cientista social.
Além disso, os madeireiros usam os lotes dos colonos nos assentamentos como passagem para os caminhões que transportam as toras. Os agricultores que não concordam com o esquema são considerados detratores e correm risco de morte. É o caso de Osvalinda, Daniel e Antônio Silva. “Queriam pagar US$ 28,00 para cada caminhão que atravessasse nossa terra. Isso é errado. Nós não aceitamos”, afirma a agricultora.
A carência de serviços públicos básicos no oeste do Pará facilita a ação dos madeireiros. “Eles ocupam o vácuo deixado pelo Estado, construindo estradas, às vezes até escolas, e oferecendo trabalho em áreas que estão degradadas. As estradas dos assentamentos são a porta para entrar na floresta e é isso que interessa às madeireiras”, explica Carolina Motoki. O PA Areia, onde fica o lote de Osvalinda e Daniel, faz limite com o Parque Nacional da Amazônia, uma das mais antigas unidades de conservação da floresta, criada em 1974.
Nessa parte do oeste do Pará, a árvore mais procurada é o ipê, cujo metro cúbico é cotado a US$ 1.750. Cada caminhão transporta 240 metros cúbicos de madeira, ou seja, US$ 416 mil. Além do alto valor no mercado internacional, o ipê apresenta uma vantagem para os madeireiros: sua extração escapa da vigilância por satélite porque não demanda a abertura de grandes áreas de derrubada. A árvore tem florada e pode ser avistada em sobrevoo. Assim, o ipê é extraído de forma cirúrgica, sem devastação evidente. Só pelo PA Areia, dezenas de caminhões carregados com toras circulam diariamente.
Segundo Carolina Motoki, o esquema de extração seletiva de madeira se aproveita de trabalhadores rurais em condições de extrema vulnerabilidade social chamados de “toreiros” – os transportadores de toras. Eles constituem a base da pirâmide do negócio ilegal e realizam o trabalho mais arriscado. “Ainda por cima, quando as autoridades federais fazem fiscalizações, são esses trabalhadores que vão preso”, afirma a pesquisadora.
Em agosto de 2015, uma operação da Polícia Federal batizada de “Madeira Limpa” desbaratou uma quadrilha de empresários e agentes públicos de órgãos federais e estaduais que extraía madeira da Amazônia de forma ilegal. Segundo as investigações, agricultores de assentamentos eram forçados a participar do esquema criminoso para continuarem recebendo os benefícios de programas sociais, como o Bolsa Família. “Boa parte da madeira extraída ilegalmente segue pela via fluvial até Belém (capital do estado do Pará) e parte para a exportação”, explica Olavo Pimentel, delegado da Polícia Federal.
Tensão inevitável
Se de fato sair do papel, a hidrelétrica de São Luiz do Tapajós vai alagar comunidades ribeirinhas tradicionais e aldeias indígenas. Seus 6.133 MW de eletricidade são suficientes para abastecer 20 milhões de residências, segundo a Eletrobras, estatal que lidera o consórcio de empresas interessado na concessão. Os grupos franceses EDF e GDF Suez figuram entre os possíveis sócios do empreendimento.
O nebuloso futuro que aguarda os municípios diretamente impactados pela construção da usina de São Luiz do Tapajós pode ser depreendido da recente experiência ocorrida em Altamira, onde foi erguida a polêmica hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no estado do Pará. “Em Altamira, conforme a obra avançava, houve uma grande deterioração tanto da área urbana, com o aumento da violência e do inchaço da cidade, quanto da área rural, com o agravamento das invasões de terra e do desmatamento ilegal. No Tapajós, isso também ocorrerá. É inevitável”, analisa Olavo Pimentel, da Polícia Federal.
O delegado explica que, apesar da gigantesca área do oeste do Pará sob sua jurisdição, que corresponde a “duas vezes o estado do Rio Grande do Sul”, ele conta apenas com 60 servidores, entre policiais, peritos, técnicos e auxiliares. “Por um lado, a hidrelétrica traz progresso. Por outro, atrai pessoas para a extração ilegal de madeira. É inevitável. Mas os órgãos de fiscalização têm de se preparar para atuar de forma mais intensa”, diz Pimentel, que prefere manter sob sigilo os novos inquéritos a respeito de grupos criminosos que agem na devastação da floresta.
Além de resgatar o exemplo da usina de Belo Monte, Carolina Motoki lembra a experiência de outra faraônica hidrelétrica amazônica – a de Tucuruí, no rio Tocantins, também no Pará – para mostrar como as barragens agravam a tensão social. “Há um grande fluxo de trabalhadores que chegam em busca de trabalho, mas nem todos são absorvidos”, afirma a pesquisadora. “Isso intensifica os conflitos, com o inchaço de locais que não têm infraestrutura para receber esse contingente”, acrescenta.
O próprio Relatório de Impacto Ambiental da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós realizado pela Eletrobras já antevê esses problemas. “A vinda de pessoas com costumes e modos de vida diferentes, a pressão sobre os bens de consumo, serviços urbanos e sociais, a diferença de interesses de cada grupo poderão resultar em conflitos sociais e aumento de violência”, diz o texto. Para a mitigação desses conflitos, entretanto, o documento traz propostas lacônicas, como “programas de interação social, de assistência, segurança pública e de avaliação das condições socioeconômicas dos municípios”.
Na avaliação de Maurício Torres, “a história de que a construção da usina de São Luiz do Tapajós é um fato consumado, sem saber se ela é de fato viável, nada mais é do que uma estratégia usada para desmobilizar qualquer forma de resistência à hidrelétrica”, analisa. Ele ressalva que o Relatório de Impacto Ambiental da obra sequer foi aprovado pelo Ibama, o órgão federal competente. Mas, caso o projeto da usina se concretize, Torres avalia que “a hidrelétrica aqueceria o mercado de terra, que se regula pela violência e pela exploração predatória de recursos naturais, o que por si só já é temerário”.
No Projeto de Assentamento Areia, a agricultura Osvalinda conta que já há pessoas de outros estados acumulando lotes. “Existe até fazendeiro do Paraguai adquirindo terras. Para nós, pequenos produtores, isso é prejudicial porque eles chegam, compram baratinho dos colonos e fazem fazendas”, lamenta a assentada. “Assim, vamos ficando cada vez mais apertados e sem condições de fazer financiamentos ou de ter ajuda de governo ou prefeitura. Os ricos vão ficando cada vez mais ricos e nós, cada vez mais pobres. Esta é a realidade”, complementa.
Diante da possível construção da hidrelétrica, Osvalinda teme uma ofensiva dos madeireiros. “Vai haver necessidade de mais madeira por causa das obras da barragem”, prevê. Por sinal, os madeireiros da região já aproveitaram a notícia sobre a usina para jogar os vizinhos contra Osvalinda, seu marido Daniel e o vizinho Antônio Silva. Espalharam o boato de que os três assentados estariam organizando os ribeirinhos das comunidades a serem alagadas para ocupar lotes abandonados ou apropriados pelos grileiros. Os três camponeses até riem do boato. E negam.
Antônio Silva, que mesmo aos 64 anos é capaz de escalar açaizeiros em poucos segundos, já sobreviveu a muitos conflitos. Brigou com fazendeiros “que mandavam matar quem fizesse uma roça para plantar”. Bateu de frente com os donos dos garimpos em Serra Pelada, maior mina de ouro do país, instalada no sudeste do Pará, na década de 1980. Mas, agora, parece vencido pelo cansaço na disputa com os madeireiros. “Rodei muito: Piauí, Maranhão, Pará, Mato Grosso. Hoje, vivo entocado”, conta. Ele se ressente do abandono dos vizinhos.
“De um modo geral, os assentados ainda não entendem que estão ameaçados. Todos eles estão em risco por conta da barragem e isso só vai piorar”, alerta o padre João Carlos Portes, da Comissão Pastoral da Terra de Itaituba, município que vai concentrar os mais graves impactos caso seja construída a usina de São Luiz do Tapajós. A principal preocupação do padre é que, com o advento da hidrelétrica, os camponeses sejam expulsos por milícias para que os lotes sejam posteriormente vendidos. “Não se pode pensar apenas na usina de São Luiz do Tapajós. Há diversos projetos preocupantes – outras hidrelétricas, além de portos, ferrovias e rodovias. Porém, os estudos de viabilidade não avaliam o impacto conjunto desses empreendimentos”, finaliza João Carlos Portes.
Por: Tatiana Farah
Fonte: Repórter Brasil
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