Diário de Bordo de uma palhaça (por Geisa Helena)
Conheci o projeto Cineamazônia através do palhaço Kuxixo. Ele participou da itinerância e acabou nos indicando para os coordenadores. Quando a Fernanda Kopanakis, uma das organizadoras e idealizadoras do projeto me ligou, eu fiquei extremamente empolgada com a viagem e o projeto. Passava muito tempo pensando nele e em como me oferecia uma oportunidade única.
Eu estava certa em aceitar de primeira, mas não tinha mesmo a noção de como seria. A viagem pelo Guaporé muda nosso olhar. Nos transforma. E, sem sombra de dúvida, eu preciso voltar aqui. Aqueles olhares, aquelas pessoas… aquele lugar. Oh, região maravilhosa! Foram tantos momentos que ficarão para sempre em minha memória e meu coração.
Foram 21 dias e dezessete apresentações. Tive a oportunidade de ver crianças maravilhadas, com olhares carentes e curiosos. Vi e senti uma energia única. Um céu absolutamente fantástico com tantas estrelas que enchiam os olhos de água.
Entre esses dias, um foi muito especial. Não foi o dia da maior aventura ou o melhor de todos. Mas algo de certa forma me marcou, como se a cada período do dia acontecesse algo lindo ou extraordinário.
Chegando a cada comunidade, eu tratava logo de me arrumar para sair do barco e conhecer o local. Próxima parada: Surpresa. A ironia do nome me sugeria algo. Como já estávamos praticamente há uma semana no barco, precisava comprar algo doce. Saímos (Alexandre e eu) logo cedo e no meio do caminho encontramos um homem. Perguntamos se havia um mercado e ele, solícito, tratou de nos acompanhar até lá. Era perto e o papo com ele era muito agradável.
No meio do caminho, havia uma escola e era necessário atravessar o pátio dela. Assim que entramos nela, uma menina de uns 9 anos, no meio de seus colegas, tratou logo de gritar: “olha os palhaços!!”, apontando o dedo em nossa direção.
Como não podia deixar de ser, rebatemos: “Uai, eu tenho cara de palhaço?”. Eles riram. “Não tenho nariz de palhaço”. Eles riram mais. “Eu tenho cara é de galã de novela”, disse o Ale. “E eu, de modelo”. Eles gargalhavam e terminaram gritando: “é, eles são os palhaços”.
Quando saímos como civis, dificilmente alguém nos reconhece e considerando que viemos a uma parte não conhecida, já começamos o dia com uma bela ‘surpresa’.
Ficamos empolgados tanto quanto elas. Estavam com os olhos brilhando. Pouco tempo depois, já de volta ao barco, veio uma das maiores surpresas: a Fernanda nos convidou a passear de voadeira – como eles chamam a pequena lancha que serve de transporte nas comunidades ribeirinhas – para ver a revoada de pássaros. Topamos na hora.
Havia pequenos montes de areia no meio do rio, onde os pássaros se agrupavam. Eram pretos e muitos. Muitos mesmo. Conforme a voadeira se aproxima, os pássaros vão levantando voo. No melhor momento que se possa esperar, o pequeno barco atravessa essa revoada e o que nós vimos foi uma das coisas mais maravilhosas e encantadoras que eu já pude acompanhar.
Não se pode explicar a sensação daquilo. Você está num ‘barquinho’ e literalmente entra no meio dos incontáveis pássaros negros que, conforme levantam voo, provocam uma confusa e fina chuva das águas que ficaram debaixo de suas asas. Quase um Hitchcock.
Nesse mesmo dia, eu subi no topo do barco e fiquei sentada por um bom tempo. É impressionante a beleza que existe aqui. Você pode ficar horas olhando para essa natureza toda e não se cansa.
É um delicioso lugar para apenas olhar e sentir. Simples assim. Um pouco mais tarde, desci para tomar café e nesse dia, teve algo a mais. Fizeram ‘massaco’, que é uma massa de banana com queijo. Mas tinha também a versão dela frita e feita com carne seca. Meus deuses, que coisa deliciosa!!!
Eu me esbaldei nela até que subiu no barco um garoto (que também estava na escola mais cedo), vendendo bolo de tapioca. Compramos alguns e ele continuou ali. Parou e timidamente observou bem a mesa. Oferecemos leite, chocolate e nada. Ele tomou água, conversou conosco e desceu. Ele não queria comer… só estar ali. Levava consigo um leve sorriso de expectativa, de ansiedade. E garantiu sua presença a noite.
Quando saímos do barco prontos para a apresentação, vimos uma lua cheia bem baixa, na direção dos olhos… enorme e linda. E falo dela porque algumas imagens realmente marcam e nos deixam maravilhados. Subimos.
A delícia em ver que está lotado… e a cada instante apareciam as motos se aproximando, trazendo mais e mais pessoas. Olhando para trás, pequenos barcos trazendo famílias inteiras… tribos.
Os índios – tímidos, se agrupavam e ficavam lá no fundo. Mas não menos curiosos.
Que apresentação! As crianças eufóricas, curiosas, disponíveis… lindas! Os adultos igualmente atentos e espontâneos. Todas as cenas funcionaram muito.
E no final, em uníssono exclamam: “Ahhhhh”, no desejo de quero mais. E eu também quero.
O que passamos aqui levaremos eternamente em nossos corações. A cada olhar curioso, cada abraço apertado, cada gargalhada… Quantas emoções, diversões, trabalho, alegria, descobertas, reflexões. Saio com o desejo de voltar muito em breve, como uma necessidade incansável de trazer mais arte para essas pessoas. De vir e compartilhar ideias, espetáculos, vivências, oficinas… de trocar e sobretudo, aprender.
É isso. Estar aqui me fez pensar e repensar nosso papel. Esses novos olhares, ingênuos e em alguns casos virgens, nos instigam a querer mais. Saio também com a sensação de dever cumprido. De ter colocado uma sementinha cultural – mesmo que pequena, nessas comunidades. E oxalá eu tenha a oportunidade de estar outra vez aqui e poder aprender mais.
A Trupe Koskowisck volta para a casa muito, mas muito recheada e colorida!
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