Diário de Bordo – ABUNÃ
Nesse dia, a rota do Festcineamazônia itinerante saiu de União Bandeirante, distrito cuja arquitetura é predominante de madeira, uma marca da fronteira de expansão agropecuária em direção à floresta, para uma vila colonial, onde a glória de um passado áureo dos tempos da borracha se faz presente: Abunã. Locomotivas, trilhos, a estação ferroviária, o galpão de mantimentos que abastecia os seringais. Em uma praça às margens da BR 364, a história local mostra a grandiosidade que teve um dia. Mostra também como sucessivos projetos econômicos tentam trazer para a Amazônia, nem sempre com sucesso, o ideal de progresso que se tem no sul do País.
No caminho do longo trecho de terra, ainda na área rural, passamos pela Escola Municipal Valdeci Teixeira, onde uma placa indicava que a área era impactada pela usina de Jirau, e por isso teria financiado a reforma da escola por R$ 225 mil. Mesmo distante da margem do Madeira, o impacto social da usina é percebido pela população.
Assim que chegamos às margens da BR 364, aparece um núcleo urbano, chamado Jirau. Poucos meses atrás havia aqui poucas casas. Mas cada vez mais tem sido ocupado por moradores desalojados do distrito de Mutum Paraná, e que não se adaptaram na urbanização planejada pela usina Jirau para o núcleo Nova Mutum.
Entramos em na antiga Mutum. É difícil notar, da estrada, que aqui foi um núcleo urbano. A floresta se regenera rápido, e as frágeis ruas foram tomadas por matos, um barro alagado. Ficaram os restos das construções, cicatrizes do distrito que existiu. E também trilhos da Madeira Mamoré, um equipamento que era utilizado nos trilhos, já tomado e escondido pela vegetação. Em edições passadas, o Festcineamazônia realizou projeções em Mutum, e estas transformações recentes fazem parte da documentação dos registros do festival. Foi impossível localizar, em meio ao mato crescente e falta de referências urbanas (toda a estrutura foi destruída), o local onde era estendida a tenda do cinema.
A estrada, em certos trechos, está sendo erguida para dar espaço ao lago da usina. Pontes novas, mais altas, se mostram imponentes ao lado das antigas pontes de ferro da Madeira Mamoré – estas que, aparentemente, podem submergir. Visto do alto da estrada e das novas pontes, os desmatamentos para o lago formam uma paisagem que choca. Formam um chão cinza de troncos e galhos secos, em um nítido contraste com a mata alta que ainda não sucumbiu.
Abunã se anuncia pelo cheiro. Não da cidade em si, mas de um frigorífico instalado às margens do Madeira, o Frigonosso, que começou a ser construído há alguns. No entanto, passou a funcionar apenas recentemente, após um ano e meio embargado pela justiça, quando obteve uma decisão liminar favorável. O mau cheiro acompanha o percurso do carro por algumas centenas de metros. Pessoas entrevistadas percebem o cheiro, só que a falta de melhores condições de vida, de trabalho, e de perspectiva faz com que celebrem a chegada do empreendimento. “Mau cheiro? Difícil é não ter nada aqui dentro”, comentou um senhor apontando para a barriga.
Dessa vez, ao invés de tenda, foi utilizado a estrutura da quadra esportiva da Escola Municipal Marechal Rondon, cedida pela diretora da escola, Nézia Brás. A quadra foi construída pelo consórcio Energia Sustentável, da usina Jirau, como uma forma de mitigação dos transtornos à população, objetivando uma das áreas mais deficitárias da localidade: o lazer.
A quadra coberta custou R$ 435 mil. “Estávamos precisando de uma quadra coberta aqui na comunidade. Mas isso ainda é muito pouco, o impacto é grande e Abunã tem muitas necessidades”, afirmou o administrador do distrito, Sérgio Augusto Sousa Lima, administrador do distrito, presente no evento. “O festival vem a contribuir para a área de lazer, tão deficiente aqui no distrito”, ele diz. Há 10 anos vivendo em Abunã, hoje Lima tenta mediar o impacto da construção da usina Jirau, que atinge os moradores.
Nesta quarta apresentação em cinco dias, os primeiros a chegar foram as crianças. Algumas a pé, outras em bicicleta. Animadas com a quadra, chegaram a se anteciparam à projeção para jogar bola enquanto a equipe montava o cenário. Karina e Karine, irmãs gêmeas de oito anos, que vieram junto de seus dois irmãos e os pais, queriam ver os filmes e, principalmente, ver as palhaçadas do palhaço Sorriso. Ana Clara, 7, também chegou cedo. Estava curiosa para ver os filmes, e disse que queria fazer uma apresentação de “dança da Índia”: “eu fiz na inauguração da quadra!”
Abunã é uma cidade histórica, em estilo colonial, e um dos locais onde as marcas da Estrada de Ferro Madeira Mamoré faz pensar sobre como a Amazônia tem sido vista ao longo dos tempos. Algo distante, um lugar que fornece matérias primas, um estoque de commodities naturais para serem utilizadas pelo resto do país, deixando pouco no local.
Jirau realizou um convênio para recuperar o galpão de ferro que era o antigo barracão da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, no valor de R$ 727 mil. E nessa obra encontramos o haitiano Allus Pierre. Ele veio do Haiti numa longa marcha, que começou de avião e passou por diversos países da América do Sul. Conseguiu um emprego de pedreiro na reforma. “Não consigo mandar dinheiro para a minha família, aqui não tem banco., só em Porto Velho, e é dificil”, ele diz. O rapaz diz gostar do Brasil, e que vive com outros 30 haitianos na região – alguns mais vão vir trabalhar na obra. “Eu quero ficar aqui.”
Lélio Ibañez, 48, é garimpeiro no Madeira há 30. Foi administrador do distrito de Abunã, e tenta organizar os garimpeiros e a comunidade para exigirem mais benefícios da usina. “Eles dizem que nós não somos impactados. Hora falam em indenização. Hora falam em incrementar o fomento para as atividades. Não fica claro o que vai acontecer com a gente, qual vai ser o impacto. Mas nós somos sim impactados, isso aqui é um charco e vai alagar tudo. Temos medo do que vai acontecer. Vamos nós mesmos fazer um estudo de impacto ambiental para mostrar para eles.”
A população reclama de não ser ouvida. Mota chegou do Maranhão em 1975 e alistou-se no exército. Além do garimpo de ouro, esse era o melhor emprego na época. Passou, então, a trabalhar na área de saúde. Montou um mercado, uma pousada, comprou uma terra onde cria 400 cabeças de gado. Os quatro filhos cursaram universidade e vivem em Porto Velho. Ele sonha ver o distrito se desenvolver. E para chegar o progresso que espera? “É preciso vir mais gente. Se tiver mais gente, vamos ter mais peso político. Daí os governantes vão olhar para aqui.”
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