O fim da Amazônia
LÚCIO FLÁVIO PINTO
Há exatamente 30 anos, em 1985, o então presidente José Sarney fez a sua primeira visita à Amazônia. Foi ver o primeiro projeto de mineração a entrar em operação no Pará, a mina de bauxita da Mineração Rio do Norte, uma das maiores do mundo. Para pousar na pista do núcleo residencial de Porto Trombetas, o avião presidencial precisou passar por cima do lago Batata.
A visão foi constrangedora. Quase 20% da superfície líquida se tornara sólida, aterrada pelos rejeitos da lavagem do minério, que eram depositados no lago porque a mineradora não construíra uma bacia própria de deposição. O Batata, um dos maiores lagos que margeiam o grande rio, afluente da margem esquerda do Amazonas, estava sendo destruído sem clemência. O volume despejado até aquele momento correspondia à lavra de apenas uma década e meia.
A imagem chocou quem assistiu à exibição da reportagem sobre a visita, feita pela TV Globo, ecoando pelo mundo. A paisagem transformada do lago se parecia mais com Marte do que com a Terra, por sua coloração vermelha e o desaparecimento de toda forma de vida no local, dos peixes às plantas. Se dependesse da mineradora, que era controlada pela ainda estatal Companhia Vale do Rio Doce, associada a várias das multinacionais do ciclo do alumínio, o Batata estava condenado à morte.
Uma condenação absurda. Não só pelo aspecto ecológico: também pelo econômico. A MRN construiu uma ferrovia para transportar o minério por 30 quilômetros, da jazida até o porto privativo. Mas um terço da carga era rejeito, que só seria descartado no ponto de lavagem, à beira do rio. Além da lama vermelha, o processo produtivo gerava um pó da mesma cor, expelido pela chaminé, sem filtro, que cobria tudo.
A bauxita era lavada e depois seca porque parte da produção ia (e ainda vai) para o Canadá, local de origem da Alcan, que por alguns anos foi a única proprietária do projeto, até a CVRD se incorporar ao empreendimento para que ele pudesse ser retomado. O minério precisava ser seco para não congelar no porão dos navios que chegavam ao Canadá no inverno.
O forno de secagem do minério era alimentado de madeira, extraída arbitrariamente de uma área que seria inundada pela barragem da hidrelétrica do Trombetas. A usina não saiu até hoje, mas o ex-quase-futuro reservatório foi limpo e as árvores se transformaram em lenha até o alerta de que se tratava de um desmatamento absurdo.
O alerta veio através da repercussão internacional das imagens do lago, que desnudavam a aparência de normalidade da mineração. Desde o início a extração da bauxita devia ter um depósito de rejeito e o ponto de lavagem de minério no alto da serra, sem que o trem precisasse transportar (com ônus ambiental e econômico) material estéril num percurso de 30 quilômetros, para descartá-lo nas belas drenagens naturais da região de Oriximiná.
A partir da reação, a Rio do Norte fez uma inovação: passou a depositar o rejeito em buracos que abriu ao lado da mina e a recobri-los com terra vegetal para replantar as espécies nativas da floresta que derrubou, recompondo assim a paisagem. Foi a primeira aplicação à lavra de bauxita de uma técnica usada para uma atividade em menor escala, a lavra de fosfato nos Estados Unidos.
O erro inicial estava corrigido, mas não teria havido as mudanças sem pressão externa. Quanto custou a falta de iniciativa da própria mineradora? Nenhum cálculo foi feito na época e até agora. Mas uma ideia atualizada pode ser estabelecida a partir da constatação de que a cada ano a MRN descarta mais de cinco milhões de toneladas de material estéril.
Significa que, em 10 anos, terá produzido tanta lama de rejeito quanto a Samarco acumulou nas duas barragens que se romperam e provocaram a maior tragédia ambiental da mineração no Brasil. E a Rio do Norte já tem 30 anos de operação comercial, a mais antiga mineradora no novo ciclo da atividade, iniciado 60 anos atrás com a lavra de manganês no Amapá por outra multinacional, a siderúrgica americana Bethlehem Steel, em sociedade com o grupo empresarial de Augusto Trajano Antunes.
Essa muito mal conhecida história ensina que é inconfiável o compromisso das empresas de mineração de prevenir – ao máximo possível pela tecnologia disponível – os acidentes inerentes à sua atividade e minorar ao máximo os efeitos deles quando ocorrem por um acidente completamente fora do controle. A tragédia de Mariana não deixa dúvida, qualquer que tenha sido a causa do rompimento dos diques de contenção do rejeito da pelotização (agregação em pelotas) do minério de ferro, sobre um ponto: a negligência da Samarco, na qual a antiga CVRD (privatizada há quase 20 anos) tem metade das ações, em parceria com a anglo-australiana BHP-Billiton.
A empresa não respeitou o limite de segurança recomendado para reter os 50 milhões de toneladas de rejeitos que vazaram nem dispunha de uma alternativa segura para um acidente. O plano que elaborou não estava à altura do risco que um rompimento causaria à área situada abaixo das duas barragens que entraram em colapso. Daí a gravidade e extensão do dano que causou e dos prejuízos, que ainda nem foram exatamente calculados. O que já foi apurado, no entanto, é o bastante para que a sociedade brasileira se comprometa em dar um basta ao livre arbítrio das empresas de mineração (assim como das demais que possuem barragens, como as de energia) e obrigue o governo a sair da sua inércia, omissão ou incompetência, mais graves até do que a irresponsabilidade desses setores da iniciativa privada. Com um agravante: a Samarco é considerada como uma das melhores do setor. Como será a pior?
Uma resposta segura exige uma revisão rigorosa da situação das frentes econômicas que avançam sobre novas fronteiras na Amazônia, em particular no Pará. Há boas notícias no front, mas elas precisam ser relativizadas em função da dinâmica da ocupação da região, que ainda é marcantemente predatória e irracional. O Imazon, uma das mais ativas instituições de pesquisas amazônicas, apresentou uma dessas notícias, imediatamente comemorada, como aconteceu por ocasião da recente visita a Belém do príncipe herdeiro do trono japonês.
O Instituto do Homem e do Meio Ambiente constatou que 230 quilômetros quadrados (ou 23 mil hectares) foram desmatados na Amazônia Legal no mês passado. Houve redução de 5% em relação a outubro de 2014, quando o desmatamento somou 244 quilômetros quadrados. Já a área degradada de florestas foi muito maior, alcançando 1.009 km2, com incremento de 115% em relação a outubro de 2015, quando a degradação somou 468 km2.
A notícia é boa, mas não tão boa quanto parece. Primeiro, porque a derrubada de mata nativa prossegue, desfazendo a esperança quanto à viabilidade do tão apregoado desmatamento zero. Invariavelmente, a floresta virgem é substituída por cultivos de valor inferior e sem o mesmo desempenho ecológico.
Em segundo lugar, porque o corte raso, geralmente feito para a implantação de fazendas de gado ou plantio de culturas comerciais, como a soja, foi substituído pelo corte seletivo de madeira, que, mantendo a copa das árvores, não é registrado pelos satélites e camufla as estatísticas de desmatamento e degradação.
Mesmo quando ambas as agressões se reduzem ou desaparecem, não há muita razão para a comemoração. O Pará, onde o desmatamento diminuiu, a liberação de gases de efeito estufa é maior porque crescem as queimadas em áreas já alteradas. Por isso o Estado é o líder da região. Significa que a atividade humana se alterou numa fronteira já mais densamente ocupada. No entanto, segue a mesma diretriz em uma nova fronteira, como a do Amazonas, que abrigou 16% do desmatamento constatado em outubro, um índice elevado se comparado aos 29% de Mato Grosso, 26% de Rondônia e 24% do Pará.
O Estado da propaganda ecológica desencadeada pelo ex-governador e atual ministro (das minas e energia) Eduardo Braga desmorona, o que se evidencia ainda mais pelo índice de desmatamento, de 2%, do vizinho Roraima. O pioneiro que devastou os vales do Araguaia, Tocantins e Xingu chega com os mesmos procedimentos ao vale do rio Madeira. Por isso, a Amazônia continua a sofrer – e a desaparecer.
O resto é ingenuidade. Ou, então, propaganda.
A fotografia do desmatamento em Beruri (AM) e que ilustra esse artigo é de Albert César Araújo.
Lúcio Flávio Pinto é jornalista, sociólogo, formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém/PA desde 1987. Lançou recentemente o site Amazônia Hoje e blog Cabanagem. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, “Guerra Amazônica”, “Jornalismo na linha de tiro” e “Contra o Poder”. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras.
Fonte: Amazônia Real
Você também pode gostar
Em Rondônia, as ameaças de morte não costumam ficar na promessa
Cerca de cinco quilômetros (km) antes de entrar no assentamento 10 de Maio, no município de Buritis (RO), uma placa avisa aos que se aproximam: “Quem estiver de moto, tire
Vila construída pela Usina de Jirau desconsidera cultura local e vira cidade fantasma
Quem trafega pela BR-364, nas estradas de Porto Velho, capital rondoniense, precisa ficar atento para notar que Vila Jirau existe. A comunidade, contudo, existe e a existência dela é uma
Expectativa de hidrelétrica aumenta ameaças a assentados
Quando cai a noite no Projeto de Assentamento (PA) Areia, a quarenta quilômetros do município de Trairão, no oeste do Pará, o silêncio é cortado pelo barulho de motos rodeando