Há mais estrelas no céu do que carapanãs na Terra
Texto e fotos: Pedro Carrilho, Fotógrafo do Cineamazonia Itinerante 16ª Edição
“Como fotógrafo, geógrafo por formação e viajante inveterado que nunca havia tido a oportunidade de conhecer os confins da Amazônia, recebi o convite para participar do Cine Amazônia itinerante 2019 com grande entusiasmo. A oportunidade de navegar o rio Guaporé abaixo, de Pimenteiras do Oeste até Surpresa (e o trecho do Mamoré a partir dali até Guajará-Mirim), levando arte e cultura para as populações ribeirinhas, foi ao mesmo tempo instigante e desafiadora desde o princípio.
Nesse rincão da América do Sul mais próximo do Pacífico do que do Atlântico vive uma Amazônia em grande parte já explorada economicamente, mas pouco conhecida para a maioria dos brasileiros. Eu mesmo pouco ou quase nada sabia antes da viagem que não informações gerais sobre Rondônia. E logo no voo que nos levou desde o Mato Grosso até Vilhena, no extremo sul do estado, onde começaria a expedição para parte da equipe, alguns estereótipos já se confirmaram: a monocultura da soja e seus campos geométricos até perder de vista mostram logo de cara que estamos numa região de fronteira, em mais de um aspecto.
Mas não muito longe da soja e das fazendas de gado que marcam a história recente e o presente das terras rondonienses, as margens do Guaporé, cobertas por densa mata nativa, representam outro mundo quase que totalmente oposto. Pontuado por pequenas comunidades ribeirinhas, quilombolas e territórios indígenas, alguns em recantos idílicos, outros em isolamento quase total, o vale abriga natureza exuberante, protegida parcialmente em Parques e Reservas, principalmente na margem boliviana, além de resquícios da conturbada e rica história da região, como um enorme forte colonial português, sublinhando o caráter fronteiriço, e até possíveis ruínas pré-colombianas.
O rio, no entanto, não revela todos seus encantos de uma só vez. É época de cheia, abundância e céus claros, e tudo é verde e frondoso. Acordar junto com o sol para se ver totalmente cercado pela floresta amazônica é aquele momento em que cai a ficha da imensidão da Amazônia. Por outro lado, as águas altas escondem as praias fluviais que se formam a cada meandro em outras estações do ano, e dos barrancos nas margens distam mais que o usual os animais. É um período em que é raro ouvir o esturro de uma onça, mais presente nas histórias de encontros de vida e morte contadas com um misto de orgulho e assombro por moradores locais, ou na esperança de que nós, meros passantes também pudéssemos vislumbrar o mais magnífico animal da região – o que infelizmente acabou não ocorrendo.
Ainda assim, a vida selvagem abundante persevera na forma do constante balé aquático dos botos, nas árvores lotadas de biguás durante um pôr do sol cinematográfico, na revoada de carcarás, tuiuiús, araras e uma infinidade de outras aves, no deslizar veloz das cobras d’água, no pique-esconde das ariranhas, nos jacarés, capivaras, queixadas… Tudo isso atestando a vivacidade de uma natureza que segue resistindo às investidas cada vez mais frequentes daqueles imediatistas que não acreditam que a conta um dia virá.
Aliás, a ideia de resistência permeou a viagem do início ao fim. Num período em que as artes, a cultura, a natureza, as minorias, as ciências e o conhecimento estão mais sob ataque do que nunca, o grito é de amor, como diz o lema, mas é também de resistência. Resistência quilombola, resistência dos povos originários, resistência de uma cultura sob constante ameaça.
Em alguns poucos trechos o verde corredor do Guaporé é brevemente interrompido, na margem brasileira, por tentáculos da fronteira do agronegócio, que se por um lado traz prosperidade para alguns, por outro impõe enorme pressão às populações ribeirinhas, seu modo de vida, e à vida selvagem e seu habitat, cada vez mais espremidas no que resta de território preservado. Lugares como Costa Marques, mais urbanos, trazem as marcas da cultura rural contemporânea originada em grande parte nas levas de colonos sulistas, e acabam por deixar mais evidentes o embate e os conflitos que caracterizam a região.
Tradições centenárias também resistem, como a Festa do Divino Espírito Santo, um espetáculo de devoção que quase foi apagado da memória pelas ondas da história, e que hoje resiste em total contraste com as doutrinas de denominações religiosas cada vez mais hegemônicas em ambas as margens. O sopro que anuncia a chegada do batelão, as lágrimas dos devotos, a provação do mastro, o hinário monocórdico, o lado mais profano das celebrações, tudo contribui para uma atmosfera ora plácida, ora caótica, alternando hipnoticamente e 24 horas por dia entre orações contidas e uma cacofonia de alto-falantes.
Longe de uma idealização ou romantização, o Guaporé é um rio de contradições, que separa dois países por mais uma linha geopolítica imaginária, mas que também une brasileiros e bolivianos irmanados numa mesma cultura e ambiente. Em diversos momentos nos perguntávamos se era Brasil ou Bolívia aquele pedaço de terra que explorávamos a pé ou observávamos desde as voadeiras ou do próprio Canuto, nossa casa durante três semanas, embarcação mal-ajambrada porém resiliente. Não fazia diferença.
Nas margens do Guaporé vive um povo humilde, porém hospitaleiro e que resiste e subsiste, tirando seu sustento dos rios e matas – trabalhos árduos em ambientes hostis como os de um castanhal ou de um garimpo.
O calor, os mosquitos, o permanente risco de encontros indesejados com cobras venenosas, os longos dias de trabalho de sol à sol às mais variadas luas, períodos de isolamento, físico e digital, o processo de se desconectar para se reconectar com algo mais humano, profundo e natural…Comparadas às provações por que passam os habitantes locais no dia a dia, os desconfortos que a equipe enfrentou no período eram apenas um incômodo passageiro.
Durante o dia, nada que um repelente na mão e um chapéu na cabeça não resolvesse. Mas assim que o sol dava uma trégua e baixava no horizonte, ali bem perto da hora das exibições, era a hora e a vez dos carapanãs, esses mosquitos turbinados que me deixaram marcas pelo corpo e que de certa forma me batizaram no ambiente amazônico. A Amazônia, afinal, não é para os fracos.
E quando o esgotamento parecia chegar, nada que um mergulho improvisado nas águas surpreendentemente frias do Guaporé não revigorasse imediatamente, física e mentalmente. Assim como a recepção afável e calorosa nas comunidades, principalmente nas terras indígenas, e o olhar de curiosidade e um sorriso puro de quem vive em situação precária e de isolamento, nos deixava por vezes contemplativos sobre o “ter” e essas coisas. Até mesmo os momentos de miséria humana e social eram ofuscados pelo reflexo da tela de cinema no rosto de uma criança local.
E nas noites mais escuras, era só olhar para o alto para ter a certeza de se estar num lugar especial.
Afinal, há mais estrelas no céu do que carapanãs na Terra.”
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