Cinema na Floresta (Matéria Revista Trip)

Matéria veiculada no site da Revista Trip: goo.gl/udmzL7

Dona Aidê pede para o vizinho adolescente que abaixe o volume do som enquanto ajeita a cadeira no quintal de casa. É um bairro de periferia de Guayaramerin, cidade boliviana na fronteira com o Brasil. O rapaz desliga a televisão na qual um DVD de Pinduca, o rei do carimbó, fazia a festa particular. Aidê abre um sorriso e começa a contar a própria história.

Na carteira de identidade está Edith, mas entre uma e outra há um mundo. É uma mulher de uns 80 anos, negra, de cabelos brancos curtinhos, brincos dourados e dedos repletos de anéis. Um sorriso calmo, uma voz pausada.

A história de Aidê está agora registrada no projeto Museus Vivos, um desdobramento do Cineamazônia Itinerante, que desde 2008 viaja pela região norte do país apresentando filmes fora do circuito a comunidades que frequentemente não tem acesso à chamada sétima arte.  A itinerância cultural, por sua vez, é um desdobramento do festival de cinema realizado todos os anos em Porto Velho.

A equipe de mais de 20 pessoas saiu da capital de Rondônia no dia 13 de agosto, em direção ao município de Guajará-Mirim, fronteira com a Bolívia. Distante 333 km de Porto Velho, Guajará-Mirim é um município conhecido por ser o ponto final da mitológica estrada de ferro Madeira-Mamoré. Fica às margens do rio Mamoré. Dez minutos de barco separam o município de seu vizinho quase homônimo do lado boliviano. Guayaramerin, por sua vez, é uma cidade mais conhecida por sobreviver como uma zona franca de produtos, mas que hoje sente os efeitos da crise financeira mundial.
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A primeira parada dessa etapa da itinerância, a segunda do ano, foi em uma reserva extrativista. Era a primeira vez que as 21 famílias de coletores de castanha, pescadores e pequenos agricultores de Rio Ouro Preto recebiam o projeto. O telão foi montado às margens do rio que dá nome à reserva e seis curtas-metragens foram exibidos. Era uma troca. Os moradores viam as histórias exibidas na tela e devolviam contando as próprias histórias de vida.

Como a de Damiana, uma sorridente senhora que adora dançar. Sabendo da programação noturna, montou uma barraca para vender bolo, suco, galinha e pato com feijão e arroz. Damiana conta que aos 13 anos foi entregue a um homem muito mais velho e levada para um seringal. Como era virgem e não se deixou possuir, o seringueiro a transformou em uma escrava. Foi assim até os 16 anos, quando o homem acabou estuprando-a. Damiana teve o primeiro de seis filhos na vida. Só foi descobrir o que era prazer sexual depois da morte do primeiro “marido”. “Agora eu sei o que é bom”, diz ela, enquanto serve um generoso prato de galinha caipira cozida.

Da floresta da reserva extrativista para as pequenas cidades de Iata, Guajará-Mirim e Guayaramerin, o percusso foi feito por estradas. Foi só no quarto dia que a itinerância equipe do Cineamazônia precisou encarar o rio. O percurso é desafiador. Os rios Mamoré e Guaporé estão no período de seca. Na Amazônia, de maio a agosto as chuvas se tornam menos freqüentes. E com os desmatamentos e queimadas esse período tem se tornado mais feroz para os donos de embarcações que ousam navegar nessa época.
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Enquanto o barco desatracava, Geisa Helena e Alexandre Malhone se entreolhavam, cheios de expectativa. Era a primeira vez que os palhaços Chiquita e Cotonete, da Trupe Koskowisck, embrenhavam-se na imensidão amazônica. Ao longo dos 21 dias de viagem, foram 17 apresentações. O público variava. Comunidades ribeirinhas, indígenas, quilombolas, religiosas, de um lado e de outro da fronteira, com nomes como Surpresa, Remanso, Buena Vista, Cafetal, Iata, Pedras Negras, Mateguá, Costa Marques e Pimenteiras. “Tive a oportunidade de ver crianças maravilhadas, com olhares carentes e curiosos. Vi e senti uma energia única. Um céu absolutamente fantástico com tantas estrelas que enchiam os olhos de água”, disse Geisa ao fim da viagem.

Entre uma localidade e outra, botos, jacarés, sucuris, macacos, capivaras, tartarugas e pássaros diversos deleitavam olhares e lentes fotográficas. Mesmo quem já havia visto muito da vida, como a experiente fotógrafa Bete Bullara, mostrava-se impressionada. Bete participava da itinerância com uma missão: ministrar oficinas de pinhole para crianças de cada comunidade onde seriam exibidos os filmes. “Tento exercitar o olhar dessas crianças, mostrar como é a fotografia artesanal”, explica Bullara, no momento em que preparava para transformar uma pequena caixa de papelão em máquina fotográfica. A oficina alimentou sonhos em cada lugar. E isso Bete Bullara percebeu ainda nos primeiros dias.

“Não fiz curso presencial porque não tem aqui em Guajará-Mirim, mas faço um curso pela internet e procuro sempre tutoriais também. Minha maior vontade é me especializar em fotografia ‘newborn’ [de bebês] porque estou com mais de oito meses de gravidez e só penso em bebês agora”, explicava Ana Clara, de 17 anos.

Para as crianças, a diversão também era garantida com a participação na oficina de pixilation, uma técnica de stop motion em que atores vivos se tornam personagens de uma animação. A mecânica é simples: os atores posam para uma câmera que captura sua imagem, depois se movimentam e outro instante é capturado. Feito isso, basta colocar as imagens em sequência e a história se faz. Em cada comunidade, Christian Ritse, auxiliado por Ian Gabriel, escolhia crianças locais e produzia um curta, exibido no início de cada sessão. “Ver as crianças se esbaldando de rir na hora em que se vêem na tela é uma experiência única”, afirma Ritse.

Ao final, mais de 3.000 pessoas foram conectadas pela arte. E como simbolismo da empreitada, em uma das várias vezes em que o barco encalhou nos bancos de areia do rio, quase todos desceram para empurrar a embarcação no meio do rio Guaporé. A cena mostra o que é a Amazônia em seu sentido mais pleno. “Se contar, ninguém acredita. Só a imagem para falar por nós”, ria o fotógrafo Zeca Ribeiro, enquanto clicava palhaços, jornalistas, equipe técnica e tripulação tentando tirar o barco do encalhe. Como cantavam os Titãs, diversão e arte para qualquer parte.

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